Arte pública

Vitor Garcez


No início deste ano recebi do querido amigo Mario Fraga um e-mail com um manifesto feito por ele e Clarisse Tarran pela preservação e conservação de uma obra de arte pública, um painel de Aluísio Carvão. Esse foi, para mim, o início de uma movimentação em torno das obras de arte públicas da cidade do Rio. O manifesto que recebi na época eu transcrevo abaixo:

Manifesto pelo salvamento de uma Obra de Arte Pública: o Painel de Azulejos de Aluisio Carvão

Datado de 1996, com 300 metros quadrados, localizado na Rua Mario Ribeiro, Leblon (Estrada Lagoa/Barra), no muro do quartel da PM, o painel de autoria do pintor Aloísio Carvão*, foi confeccionado por Márcia Nogueira, e supervisionado por ele nos mínimos detalhes.

A obra de arte está se deteriorando, os azulejos desaparecem diariamente. Uma tristeza! Onde estão os responsáveis pelo patrimônio público? A quem foi confiada a manutenção do referido painel? Tornam-se necessárias providências imediatas antes que seja tarde demais! Um painel de azulejos deve durar séculos. Aloísio é um patrimônio da nossa cultura e um mestre da cor.

Vamos salvar esta obra de arte que é um patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro.

*O pintor Aluísio Carvão (1920-2001) nasceu em Belém do Pará e viveu no Rio de Janeiro onde encontrou o ambiente cultural propício para o desenvolvimento de sua arte. Lecionou no MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, participou de inúmeras Bienais e Exposições no Brasil e no exterior (Alemanha, Japão, México, Suíça e França e outros países).

O manifesto passou por muitas pessoas e uma delas foi o arquiteto Alfredo Britto, que estava fazendo um projeto em parceria com o também arquiteto e ex-governador do Paraná e ex-prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Alfredo me disse que eles estavam realizando para o local onde se instala o 23º Batalhão da Polícia Militar um projeto para um novo parque, o Parque da Bossa Nova, sobre o qual eu já tinha ouvido falar por alto. O projeto realocaria o painel que foi feito especificamente para aquele local para alguma parte do terreno do parque. Sem fazer um juízo de valor do projeto, que tem um edifício a partir da forma de um teclado —segundo matéria da Arcoweb—, é preciso que se pense sobre o valor dessa obra de Aluísio para a qualificação daquele lugar. Se realocado, isso deveria ser feito com muito critério.

No dia 24 de julho último, aconteceu no auditório da Escola de Artes Visuais do Parque Lage um debate que tratou da "Ocupação do espaço público carioca", organizado a partir de um abaixo-assinado que solicitava das autoridades competentes "a formulação de uma política cultural com o objetivo de organizar e de criar critérios para a administração dos monumentos públicos existentes, bem como para a alocação de novos, sejam esculturas ou qualquer outro tipo de interferência". Depois da primeira reunião, uma segunda aconteceu, mas como não pude ir, não soube no que deu. Na primeira, discutiu-se muito, falou-se da cidade, da mediocridade cultural pela qual a cidade passa hoje —já tendo sido capital administrativa e cultural do país. No entanto, o tema central acabou sendo a proliferação das estátuas com homenagens diversas pela cidade, sem qualquer qualidade e pertinência artística ou urbana —do “cabeção” do Getúlio a um deformado Dorival Caymmi acenando com um violão. Isto enquanto artistas tentavam falar em nome da conservação de suas próprias obras de arte públicas.

Mais do que a simples conservação das obras existentes —que acaba parecendo uma questão muito maior do que deveria ser, se esses fossem simplesmente conservados— a proposta da reunião na EAV é a criação de uma política pública para a conservação e aquisição de obras de arte públicas para a cidade, de maneira controlada. No último domingo o Segundo Caderno do jornal O Globo publicou uma matéria de capa sobre este estado de não-conservação de algumas obras importantes na cidade.

Para além da movimentação coletiva em torno do tema, persiste a mobilização de Mario Fraga e Clarisse Tarran em defesa do painel de Aluísio Carvão, que não foi citado em tal matéria.

Essa bossa não é nova

Clarisse Tarran

1.

A cidade veloz esconde, em vidros escuros e em nossa eterna exaustão opaca, o muro que passa. Deixamos de ver o mundo, na pressa ou extenuados. O transeunte, o guarda atento, o cruzamento, o buraco. A hora, o sinal, o degrau, o motorista mau humorado. A cidade transborda.

Na repetição do caminho percebemos a ausência. Um, três, seis, quarenta, duzentas partes faltantes no extenso mural de cor. Percebemos a ausência a cada passagem. Painel de azulejo deveria ser para uma certa eternidade. O artista já nos falta.. E falta o Estado.

O painel de Aluísio Carvão se esvai na auto-estrada Lagoa-Barra.


2.

As últimas manifestações, petição e manifestos na internet, encontro de artistas, curadores e autoridades do governo na EAV do Parque Lage, acerca da falta de critério para as aquisições das peças de arte pública no Rio de Janeiro e o péssimo estado de conservação das mesmas, evoca um contexto maior de como se compreende a cidade e os valores que a permeiam.

O encontro no Parque Lage, convocou a classe das artes visuais que compareceu em peso lotando o auditório da escola numa segundafeira à noite. Na plateia, artistas com esculturas em total estado de abandono, como Ivens Machado, Ângelo Venosa e Chica Grancchi esperavam alguma resposta plausível. Organizado por João Magalhães e Carlos Zílio a comissão formada e diluída na gestão Cesar Maia, por Fernando Cocchiarale, Paulo Herkenhoff, Ernesto Neto, Everardo Miranda, Lauro Cavalcanti (ausente) e outros, explanou historicamente e debateu, rebatendo as argumentações de praxe das autoridades presentes, Washington Fajardo, subsecretario municipal de Patrimônio e Adriana Rattes, Secretária Estadual da Cultura, que dispostos a modificar a situação atual, se comprometeram a recriar a comissão e paralisar as aquisições até segunda ordem.


3.

O painel de Aluísio Carvão, inaugurado em 3 de dezembro de 1996 é situado na divisa do terreno do 23º Batalhão da Polícia Militar com a Rua Mário Ribeiro, entre a Rua Bartolomeu Mitre e Avenida Visconde de Albuquerque, no caminho da autoestrada Lagoa-Barra.

A obra foi realizada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, através da Secretaria Municipal de Cultura / Instituto Municipal de Arte e Cultura – Rioarte, com apoio da Sub-prefeitura da Zona Sul e do 23º Batalhão da Polícia Militar.

Aluísio Rodrigues Carvão, nascido em 24 de janeiro de 1920 em Belém do Pará e falecido em 15 de novembro de 2001 em Poços de Caldas, Minas Gerais, é considerado “mestre colorista”, pelo “intenso cromatismo de sua arte” e foi “um dos primeiros a se alinhar ao movimento neoconcretista”, participando do Grupo Frente ao lado de Ivan Serpa, Helio Oiticica, Ligia Clark, Ligia Pape, Décio Vieira e Ferreira Gullar, entre outros mais. Participou de muitas mostras coletivas e individuais, trabalhou também como professor, cenógrafo, ilustrador e escultor. Sua obra teve uma trajetória intensa e tem o respeito e admiração de críticos e artistas dos mais considerados.


4.

É realizada uma segunda reunião na EAV do Parque Lage. Sem a mesma divulgação pela web como na primeira. Portas começam a se fechar.

Não pode ser questão de gosto. Não podem esquecer o entorno. A cidade é feita de muitas camadas. Instituições são feitas de pessoas. Pessoas e instituições movem a cidade.


5.

Matéria de capa do Segundo Caderno do jornal O Globo, fala-se das esculturas abandonadas. Celeida Tostes no Parque da Cidade, Ivens Machado na Carioca, Ângelo Venosa no Leme, Amílcar na Primeiro de Março... Sobre o painel de Carvão todos se calam.

A escultura de mais de milhão de reais de Romero Britto antes encomendada pelo governador em 10 parcelas, agora é doada!


6.

O painel de Carvão vai ser derrubado. Em seu lugar mais um parque temático. Na Disney não. Na Auto Estrada Lagoa-Barra. Parque da Bossa Nova. Prédio em forma de piano em 5 andares. Projeto de Jaime Lerner e Alfredo Britto. Do painel? Só a Comlurb, responsável por sua conservação, sabe. Sabe?

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